Abafamento. Abafamento esse que entulha tudo o que não é necessário
entulhar. Num movimento pendente pela lentidão do funcionamento daquele que
pretende viver rápido – seus batimentos confirmam-no – deslizo sem o
conhecimento, sem a certeza do próximo passo. Nesse passo prende-se tudo. O
abafamento que entulha tudo, está lá entulhado também.
As pequenas, superficiais, mínimas e desnecessárias partículas da
minha essência recusam a sair. Entulham-se. O passo é desejado mas não
realizado. Apenas as transparentes conseguem sair. Escorrem, não em forma de
alegria nem em forma de tristeza. Escorrem apenas. A necessidade de lhes
atribuir um significado torna-se em algo abissal. Algo que supera, inclusive, o
conteúdo da própria palavra algo. Não se sobrepõe ao entulho. Era preferível
mas atulhar o entulho é algo, que não superior a algo, leva a pensar nesta
coisa, mesmo no sentido literal da palavra por ser impossível a sua descrição,
como uma baiuca.
Só na folha seguinte, aquando da viragem da página é que o alvéolo se
apresenta. Engulo a seco. Torna-se amargo pela sua pequenez. Desdenho e reduzo
a sua insignificância. Nunca uma brenha passará por lá. Num acto de revolta dou
os últimos passos sem fôlego. Nenhum deles, nem todos amontoados, se comparam
ao passo pretendido, ao passo nunca realizado. As partículas transparentes e
salgadas juntam-se à imensidão de outras que unidas chegam à frente e voltam
atrás para recuperarem. Nota-se que estão bravas. São enormes. Engolir-me-iam
se estivesse no seu âmago. Duvido que engoliriam também o entulho. Esse
permaneceria.
Tudo o que está abafado no passo preso que entulha o que o alvéolo não
deixa passar e transforma em partículas culmina num arrepio. Quão era bom que
nesse ou naqueles que se seguiram se desprenderia qualquer coisa entulhada? O
pensamento convergia-se, pela força de vontade, num arrepio que expulsaria
tudo. Tal acontecimento tornaria aquela coisa que qualquer um, rodeado pelos
seus mistérios, problemas e felicidades, aprecia em designar como vida, muito
mais fácil.
Mas, entretanto, sinto um peso a cair sobre os ombros escorrendo até
onde termino. É pouco. O resto embarra em tudo o que existe ou pode existir
onde me apoio, no conjunto de partículas granuladas de natureza mineral. O
agasalho impede o entulho de sair. Na miserável tentativa de expulsar o que há
muito não consegue sair há sempre algo que encobre. Um peso extra envolta-se em
mim. Prende-me com aquela fechadura que com um toque apenas também se
desmoronaria. Mas num sumptuoso silêncio compreendo porque tal fechadura nunca
se abriu: não é aberta que a fechadura deixará passar o entulho. Fechada e bem
trancada também não mas, desse modo, permitirá que o entulho, não reduza porque
isso é impossível, mas se expanda em algo que passa a não ser, mesmo que por
breves momentos, sentido. Em algo que as partículas da minha essência nunca
quiseram sentir. Preferiram o desconhecido com o conhecido e perfeito ao lado.
Sinto o toque de mais partículas transparentes mas provém do exterior.
São expulsas por aquele que teve a amabilidade de colocar o peso extra em mim.
Sugam-se as palavras. A boca abre num movimento não racionalizado, como se a
explicação fosse necessária de ser proferida. Porém nenhum som se entrelaça com
os soluços constantes. Afinal, a tristeza e a alegria não adjectivam a razão do
escorrer daquelas partículas que eram minhas mas tornaram-se nossas. Descubro
que nem tu consegues explicar. Tu que sempre tiveste o argumento que sempre me
calou. Tu que me embrulhas com esses largos e fortes membros que por mim já
percorreram.
Questiono-me porque não és tu em vez dele. Questiono-me e chego a uma
simples conclusão: porque tu soubeste ser simples no início, porque tu não te
apresentaste como um jogador, não me tomaste como um passatempo.
Apresentaste-te como um todo e não com diversas e codificadas peças que
formaram o todo que no fim se despedaçou com um simples toque. Porque na
realidade tu não fizeste a coisa errada com a pessoa certa, tu experimentas-te
a coisa errada que me fez compreender que não eras a pessoa certa.
E tudo termina como todas as manhãs de dois dias perfeitos. Com a
sensação dos teus que já tiveram nos meus mas que agora estão na superfície por
onde já escorregaram as minhas partículas e por fim, com todo o teu peso sobre
mim e sobre o entulho que nem após esta nem outra luta apagar-se-á.